Brasil - Uma concorrência, dois conceitos
Compra dos caças para a FAB no Projeto FX-2 expõe diferenças da estratégia brasileira
Marcelo Ambrosio
Dois grandes negócios movimentam a área bélica Aeronáutica internacional. O maior é a concorrência na Índia para a aquisição de 136 caças. Logo atrás vem o Projeto FX-2, a compra de 36 aeronaves para a FAB, operação de US$ 2 bilhões considerada prioritária para o Plano Nacional de Defesa. Três jatos estão na briga: o F/A 18E/F Super Hornet (Boeing), o Gripen NG (Saab) e o Rafale (Dassault). Porém, mais do que o debate técnico, a negociação envolve uma discussão doutrinária. Ainda que seja impossível adiantar o vencedor da licitação, o bastidor mostra como o mundo milionário do mercado de armas está sendo obrigado a se adaptar a novos tempos e a novos parceiros em potencial.
De um lado está o realismo adaptado ao cenário de conflitos assimétricos, no qual o caça, seus radares e mísseis são a plataforma de disuasão que continuará garantindo a paz sem conflitos entre Estados mas atuando contra ameaças transnacionais – tráfico, contrabando, pandemias e migrações – por exemplo. Do outro está a sedução do desenvolvimento comercial conjunto a partir de um mundo de parcerias tecnológicas e científicas. No caso, a aeronave funcionaria menos como armamento e mais como importante catalisador de inovações e negócios. Além da proteção, o país se credenciaria a um patamar de desenvolvimento econômico mais independente de controles externos.
Esse jogo será decidido até o dia 23 de outubro, Dia do Aviador, não na caserna, onde hoje se faz a avaliação técnica – cada caça será testado por uma equipe de pilotos – mas, acima, no âmbito civil do Ministério da Defesa. Em entrevista ao JB, o ministro Nelson Jobim é claro: o país não é comprador de nada, elegeu prioridades que o afastam da percepção de conflitos tradicionais e projeta a incorporação desse equipamento apenas se isso puder garantir o desenvolvimento científico em outras áreas – historicamente a indústria bélica sempre foi uma grande geradora de novas patentes.
Na disputa estratégica, dois oponentes se enfrentam diretamente tentando se encaixar nesse figurino: a Boeing e a Saab. Os americanos apostam mais na questão da recuperação do equilíbrio estratégico contra ameaças transnacionais: não só ampliaram a oferta de transferência de códigos-fonte (os softwares), como tratam o assunto na alta esfera de governo para uma reaproximação na cooperação militar, rompida desde acordo nuclear do Brasil com a Alemanha, nos anos 70.
– Lidamos com o desafio de superar 30 anos de desconfiança mútua – definiu o gerente do projeto do Super Hornet para o Brasil, Mike Coggins, apoiado por demonstrações claras de apoio governamental. Uma delas vinda do próprio departamento de Estado.
– O Brasil é importante parceiro global e essa é uma oportunidade de lidarmos com as diferenças – endossou o subsecretário de Estado para a América Latina, Tom Shannon, a jornalistas brasileiros na capital americana. Ao seu lado, o secretário-assistente Frank Ruggiero deu a medida do empenho da Casa Branca:
– Das duas mil licenças (códigos-fonte) que o Super Hornet carrega o departamento de Estado vetou a transferência de apenas sete para o Brasil – afirmou, recusando-se a revelar os vetos ("foram políticos, não técnicos", informou apenas). Nos meios militares, no entanto, sabe-se que os americanos oferecem um míssil ar-ar de versão inferior à usada pelos EUA no Iraque e no Afeganistão. O Brasil não os quer.
Shannon afirma ainda que a compra do Super Hornet representaria um offset (troca de tecnologia) de 117 projetos apenas no âmbito da Embraer. Porém, parte da aposta reside em uma estratégia de aproximação contínua.
– Restabelecemos um grupo de trabalho conjunto depois de seis anos de interrupção – revelou o general David Fadok, diretor de política e estratégia do Comando Sul, citando a ida de oficiais brasileiro para missões recém-abertas no país.
De produtos puramente militares, aviões viraram plataforma de inovação
A campanha americana incluiu ainda a visita de Jim Albaugh, alto-executivo da IDS (Integrated Defense Systems, braço da Boeing) com um séquito a Brasília na semana passada – o grupo usou um Boeing 737 próprio para a viagem – e ainda a programação de uma viagem com uma comitiva de senadores brasileiros à fábrica de Saint Louis, Missouri, onde o enorme e biturbinado Super Hornet é fabricado à razão de 42 unidades por ano. O ponto alto da estratégia, no entanto, deverá ser no encontro entre o presidente Obama e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva nos Estados Unidos.
Atentos às movimentações na área adversária, os suecos da Saab, que fabricam o Gripen, adotaram uma tática bastante distinta para convencer o governo brasileiro. No QG de Likkoping, a uma hora de Estocolmo, de onde saem 18 modelos CD por ano – o oferecido é o NG, ainda em fase de protótipo – o objetivo é provar que, melhor do que comprar um pacote fechado, com perspectivas relativas de offset, é ser sócio do desenvolvimento. Contra a imponência em armamento e potência do F-18, o avião sueco contra-ataca com updates nos softwares a cada 2 anos, e, segundo os fabricantes, custos menores de operação justamente por ter apenas uma turbina e consumir menos.
– A troca de tecnologia é para nós uma ferramenta de criação para novos negócios. Isso se faz no ambiente de trabalho. A Suécia é a terra da inovação e o Gripen é o catalisador – explica Magnus Lindberg, vice-presidente do programa de cooperação industrial da Saab. Aliás, nos escritórios a forma recorrente de mostrar como esse processo é histórico é dizer que São Paulo é a terceira cidade industrial da Suécia. – Tecnologia é uma via de mão dupla – completa Lindberg.
Para a definição da FAB para o projeto FX-2 – vigilância do espaço aéreo e terrestre – a Suécia oferece no Gripen o radar AESA (Active Electronically Scanned Array, capaz de detetar alvos simultâneos no ar e em terra) tanto quanto a Boeing faz no Super Hornet. Mas o discurso em Likkoping é ligeiramente diferente: em vez de neutralizar ameaças, um acordo comercial onde o jato é só uma fração da vantagem.
Assim, a gama de softwares ligados à transmissão de dados (datalinks) e em sua interpretação é diretamente associada ao alto estágio de desenvolvimento da indústria de tecnologia de informação, boa parte resultante do offset já conduzido com mais de 40 países, inclusive o Brasil. Para quem não sabe, o radar Eerie Eye que equipa os R-99 ( ERJ-145), do esquadrão de vigilância eletrônica de Anápolis, é da Saab. Segundo Lars Ekstrom, ligado ao programa, o update dos programas vem sendo feito em conjunto com a FAB e é contínuo. Muito do que é feito nesse trabalho acaba sendo aplicado em outras áreas.
– No Gripen NG, todas as pesquisas em torno dos softwares e códigos-fonte são também feitos com os países parceiros. Dividimos os riscos e os resultados em um modelo de longo prazo – atestou Magnus Olsson, diretor do projeto e ex-piloto nos anos de Guerra Fria, quando a Suécia tinha a quarta força aérea da Europa para ser a deterrência à ameaça soviética.
Esse horizonte não existe para o caso do Brasil. O modelo sueco – menos calcado na letalidade e mais na anulação eletrônica da ameaça – é também pouco amarrado ao Estado, tanto que o governo local não se envolve. Em lugar disso tem uma perna no programa das chamadas Science City. São localidades como Mjardevi e Kista, ambas no interior, nas quais universidades e laboratórios ganham incentivos para promover com grandes empresas as incubadoras de centenas de produtos.
– Desse projeto podem sair daqui junto com o caça inúmeras soluções para geração de energia limpa ou nanotecnologia, só para citar dois campos promissores – descreveu o CEO Sten Gunnar Johansonn.
Fonte: Jornal do Brasil