A Colisão de satélites revela crises espaciais
“A colisão Iridium x Cosmos, que gerou tanto lixo e pode gerar muito mais ainda através do “efeito cascata”, não pode prescindir de uma análise mais consistente e eficaz”
José Monserrat Filho
Professor de Direito Espacial, Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), membro da Diretoria do Instituto Internacional de Direito Espacial, membro efetivo da Academia Internacional de Astronáutica, membro do Comitê Espacial da International Law Association (ILA), e, atualmente, chefe da Assessoria de Assuntos Internacionais do Ministério da Ciência e Tecnologia.
Já se conseguiu evitar grande número de choques entre objetos espaciais e peças do imenso lixo hoje existente nas principais órbitas usadas em serviços de utilidade pública. Por que o satélite americano de comunicação Iridium não logrou se desviar do satélite militar russo Cosmos, já em desuso, no dia 10 de fevereiro passado? E por que o Cosmos continuava em órbita, se já não funcionava? São questões à espera de respostas.
Mas a inusitada colisão tem implicações bem maiores. Envolve sérias dificuldades políticas, que vêm causando grave paralisia jurídico-internacional. É um quadro perturbador praticamente desconhecido, que, no entanto, deveria merecer especial atenção da opinião pública global.
Três são os problemas em jogo, que julgo mais críticos:
1) O aumento vertiginoso do lixão espacial, para ser enfrentado com o devido vigor, exige medidas de bem mais eficazes que os paliativos propostos até hoje. O Comitê das Nações Unidas para o Uso Pacífico do Espaço Cósmico (Copuos), criado em 1959 para avaliar e regulamentar as atividades espaciais, aprovou, no início de 2007, uma série de diretrizes para orientar os países no tratamento voluntário do lixão espacial, adotada pelo Subcomitê Técnico-Científico, após anos de debates.
Tais normas, logicamente, deveriam ter passado pelo crivo do Subcomitê Jurídico, para ganharem o necessário peso legal, dada a gravidade da situação nas órbitas mais utilizadas. Mas a área jurídica foi mantida à margem e não teve chance de apreciar a matéria.
O fato ilustra uma das crises do Copuos: certas potências espaciais preferem normas técnicas, de cumprimento voluntário, a normas jurídicas, que sempre têm maior autoridade política, mesmo quando não obrigatórias. Troca-se o político-jurídico pelo apenas técnico, o que muda a competência básica do Copuos.
Algo similar ocorre no âmbito do Direito Internacional Público: a produção de tratados multilaterais perdeu o ímpeto dos anos 60 e 70, por exemplo. O Brasil, unido aos países da América Latina, da Europa e de outros continentes, poderia defender a inclusão do tema dos dejetos espaciais na agenda do Subcomitê Jurídico do Copuos, que se reunirá de 23 de março a 3 de abril, em Viena, Áustria.
A colisão Iridium x Cosmos, que gerou tanto lixo e pode gerar muito mais ainda através do “efeito cascata”, trombando com o monturo já existente, justamente nas órbitas de maior frequencia, não pode prescindir de uma análise mais consistente e eficaz.
2) Torna-se mais e mais necessária a criação de um Sistema Global de Controle das Atividades Espaciais, que permita saber a cada instante, como ocorre hoje no tráfego aéreo, onde e como está cada satélite lançado ao espaço, suas coordenadas exatas, seu estado de funcionamento, a situação real de seus principais equipamentos, a quantidade disponível de combustível, o nível de controle exercido sobre ele pela respectiva estação terrestre e outros dados essenciais.
A ideia vem sendo discutida há vários anos pela Academia Internacional de Astronáutica, Instituto Internacional de Direito Espacial e outras organizações nacionais e internacionais de pesquisas em C&T espacial, mas ainda não logrou sensibilizar os governos e empresas que lideram as atividades espaciais. Ante tal crise, a França propôs no Subcomitê Jurídico do Copuos o exame da “sustentabilidade das atividades espaciais”, que poderá abarcar os temas do lixão espacial, da segurança das atividades espaciais e da não instalação de armas no espaço, pois isso levaria à sua conversão em virtual teatro de guerra e possível fonte de lixões incontroláveis, bem como de consequentes apagões espaciais. Cabe ao Brasil apoiar e, se necessário, ampliar a iniciativa francesa.
3) É preciso acionar a Convenção sobre Responsabilidade Internacional dos Estados pelos Danos Causados por Objetos Espaciais, em vigor desde 1972, que, em seu Artigo 3º, responsabiliza o país cujo objeto espacial causou dano a um objeto espacial de outro país “em local fora da superfície da Terra”, ou seja, no espaço, “se o dano decorrer de culpa sua ou de pessoas pelas quais for responsável”.
Cabe perguntar: a colisão teve um culpado? A conduta concreta e objetiva de quem dirige os objetos espaciais a partir de sua estação na Terra deve ser reconstituída para se ter clareza sobre o encadeamento causa-efeito no acidente. Voltamos, assim, à pergunta inicial. Mas agora destacando um primeiro indício relevante: o satélite Cosmos, deixado ao léu após seu ciclo de vida útil, parece que voava sem controle, ao contrário do Iridium, que permanecia controlado.
A Rússia, então, poderia ser considerada culpada por não retirar de circulação o falecido Cosmos, lançado nos idos de 1993, hoje objeto em desuso e já sem controle, em órbita tão povoada.
Já os Estados Unidos poderiam ter certa culpa, na medida em que as pessoas incumbidas de dirigir o Iridium não foram capazes de desviá-lo da rota de colisão. Um choque entre dois culpados? Sim e não. Creio que, no caso, a culpa da Rússia é bem maior que a dos Estados Unidos. Mas como condenar a Rússia por abandonar no espaço um satélite inútil, que, por si mesmo, já é um enorme dejeto espacial de 950 kg, se o Direito Espacial ainda não obriga legalmente os países a conduzirem tais objetos, em derradeira manobra, às chamadas “órbitas cemitério” ou à reentrada na atmosfera para ali se diluírem?
E como convencer as potências espaciais, que sistematicamente recusam qualquer projeto de atualização dos tratados espaciais firmados há mais de 30 anos, e de criação de novos acordos para regulamentar os mais recentes rumos das atividades espaciais? Esta é outra crise com que nos defrontamos numa área que se tornou mais estratégica do que durante toda a Guerra Fria. O desafio, portanto, é mover-se num espaço de contínuas crises imobilizantes.